Desde pequeno, nas primeiras lembranças da infância, Geraldo sabia que parte de sua personalidade era mulher. “Fui educado para ser um heroi masculino e nunca me adequei. É muito difícil para um homem aceitar que não se enquadra nas tradições e no que se espera dele”, afirma. Hoje, a identidade feminina de Geraldo, 58 anos, é Letícia Lanz. “Não sou homem nem mulher. É uma questão de expressão.”

A crossdresser Letícia, que atende também por Geraldo, é casada há 35 anos com uma mulher que detesta maquiagem. Alterna as identidades, conforme a necessidade de expressão que está sentindo, e abomina o abismo que existe entre os gêneros. É preciso deixar clara a diferença entre identidade de gênero e orientação sexual. Identidade de gênero é o sentir-se homem ou mulher; nada ter a ver com a orientação sexual. No caso, Geraldo-Letícia tem um corpo biologicamente masculino e é heterossexual. “Encontrei essa mulher fantástica. Ter achado uma pessoa assim me deu possibilidade de expressar de maneira diferente”, conta.
A mulher de Letícia, A. D., tem 58 anos e é psicóloga. Conta que, quando o marido teve uma crise e saiu de casa, há seis anos, ela achou que ele estava com outra, até que conversaram. “Meu marido não tem outra, ele é a outra. Fiquei tranqüila”, diz, com bom humor. Foram necessárias muitas conversas e leitura de artigos e livros para que A. entendesse melhor o parceiro. Letícia começou a se travestir em casa e ir aos encontros do clube de crossdressers, acompanhada pela mulher. “É divertido, mas não é fácil”, admite A. A grande preocupação era, como a da maior parte das mulheres de crossdressers, em como o travestismo viria a público.
Na época em que Letícia assumiu a identidade feminina, os três filhos do casal tinham 16, 13 e 11 anos. Na base do diálogo, aceitaram a expressão do pai. “Não negocio mais com meu desejo. O dia que eu preciso me expressar, me expresso”, afirma Letícia. O ambiente de respeito e confiança foi estabelecido com muita conversa e empatia. “Tem dia que me incomodo na intimidade, tem dia que não. Não é algo que eu sempre estou a fim. Mas procuro não interferir”, diz A. Nos encontros do clube, A. muitas vezes era a única esposa presente, ainda que outros crossdressers levassem amigas. E ela é feliz? “Nesse tempo todo que a gente está junto, eu faria tudo de novo”, garante, e afirma que prefere a abertura e honestidade que tem na relação com o marido a um casamento sem essa transparência.
A internet foi fundamental para que muitos crossdressers e travestis tivessem mais informação sobre a necessidade interior de se vestir com roupas femininas, e passassem a compreender melhor o conceito de identidade de gênero. “Quando está travestido, o crossdresser é uma identidade feminina, mesclada com identidade masculina, que fica como pano de fundo da personalidade. Porque ele precisa manter e aceitar seu genital”, afirma Ronaldo Pamplona, autor do livro Os Onze Sexos. “A maioria dos crossdressers conta para a mulher depois de um bom tempo de relacionamento. Algumas mulheres por um período acham que o marido é bissexual. Mas com orientação correta, os dois têm claro que o assunto é outro, e que isso não vai desaparecer com psicoterapia”, afirma. Segundo Ronaldo Pamplona, embora haja casos em que o casal se separa, muitas mulheres, com cabeça mais aberta, acabam aceitando.
Aprender a ser mulher
Quando entende e aceita os aspectos femininos da sua identidade, o crossdresser em geral busca apoio para construí-la. “O eixo principal é a informação – ter alguém que consiga entender o que é o fenômeno”, afirma Ronaldo Pamplona. O crossdresser tem uma mulher dentro que nunca apareceu, que não foi menina, não foi adolescente. Ao acessar informações na internet e em grupos, ela ganha espaço social e vai se tornando cada vez mais feminina. Foi o que fez o cartunista Laerte Coutinho, que se vestiu de mulher pela primeira vez em 2009. A travestilidade veio com reflexões e descobertas decorrentes de uma crise pessoal. “Faz parte do processo de busca. Também corresponde - assim como modos de desenhar e produzir histórias - a antigos movimentos meus, de quando era criança ou adolescente”, afirma ao relacionar o crossdressing a uma inquietação de gênero. “Às vezes uso um elemento ou outro, às vezes me maquio, às vezes uso peitos. Varia muito, segundo o dia, a hora, o momento, o humor”. Para a namorada e os filhos, o processo de contar e familiarizar-se tem sido tranquilo, fora um ou outro momento de tensão ou estranhamento.
Ao estudar o crossdressing, a doutora em antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Anna Paula Vencato, defendeu em 2009 a tese “Existimos pelo prazer de ser mulher: uma análise do Brazilian Crossdresser Club”. Em seu trabalho, ela defende que “o crossdressing é uma montagem feita para momentos específicos e não para 24 horas por dia, 7 dias por semana”. Segundo Vencato, a maior parte das esposas aceita desde que os maridos não tornem o crossdressing público para familiares, filhos e amigos, ou façam modificações corporais como as induzidas por hormônios femininos. Em sua pesquisa, ela detectou que as relações com família e trabalho tendem a ser protegidas do conhecimento do crossdressing, em especial com relação aos filhos. “O medo de perdas sociais e econômicas está sempre implicado no contar ou não que se montam”, afirma. O fato é que o crossdresser é a mesma pessoa que era antes de tornar público o fato. Histórias como a de Letícia e de A. comprovam que fora do armário, a vida pode ser mais feliz e tranquila.
Fonte: Site Delas
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